quarta-feira, 15 de abril de 2020

Daniel Faria, excerto “Do que era certo”





Excerto “Do que era certo”
I
Nesta adiantada etapa ou quartel da minha vida, não deveria acreditar já, nem “por’í-além” em coincidências, mas por lado contrário ainda aumentam e em muito, as minhas expectativas mundanas acerca dos acontecimentos que não conseguia nem consigo, plácida e pacificamente explicar, o método e o conteúdo exótico dos mesmos.
O dia terminava quente e na ligeira aragem fresca que se fazia sentir no rosto e na pele dos ombros nus, um remédio que cura e que ao mesmo tempo me saudava os sentidos como numa saudação cósmica benigna e universal, tal o poder que sentia em mim vindo e direccionado da natureza, um auspicioso bem estar oriundo e inscrito no espaço envolvente e sentido em uníssono com a mente e o corpo. A caminho da serra sentia-se cheiro a pinheiro bravo e aquele perfume a flores silvestres contagiante e inseparável da pele, de uma fragância libertadora, como uma bênção extraída da natureza comunicando aos poros o aval, a permissão de viver que todos os dias necessitava tal como um afrodisíaco, para voltar a dar vida à vida e poder eu continuar correndo e andando pelos trilhos da montanha aberta.
Como é próprio da minha delicada e dedicada imaginação construo apocalipses e maremotos em chávenas de café mais ou menos morno, a falta de explicação de certos fenómenos iliba-me de os comprovar (excepto no generoso aroma do café) e não contesto, jamais contesto o meu voluntarioso espírito acerca da veracidade crua e volátil dos factos, trato de os preservar como num cadinho para, no futuro (digo sempre “no futuro”) os desencantar num outro universo paralelo em que façam mais sentido e encaixem magicamente, como se fossem peças de um grande puzzle.
Daniel Faria era para mim um nome mágico, pertencia a um jovem e raro poeta, monge noviço, falecido pouco tempo antes e de uma forma misteriosa, para não dizer suspeitosa e pouco esclarecida, no claustro de um convento escondido ao norte do país, Singeverg, em S. Martinho de Cucujães, uma ancestral e secreta congregação Beneditina, este sempre me tinha fascinado e não só pela escrita poética, mas não imaginava eu que, nas minha deambulações reais e com os pés e cóccix bem assentes sobre as pernas cruzadas, num chão de terra batida, o seu nome fosse pronunciado de uma forma tão real, esclarecida e clara embora com voz rouca de um sem abrigo ou eremita com que me fui acostumando a conviver na serra, ao longo de dias e meses de conversas interessantes e inteligentes acerca do tudo e do nada das coisas da vida e naturalmente da morte.
Não resisti, dificilmente resisto a partilhar perante todos e o mundo, além das minhas fontes, (verdadeiras ou falsas) o inicio e o móbil dos meus romances, tal como desta vez. Daniel Faria morreu auspiciosamente no dia do meu aniversário, o trigésimo terceiro, a pretensa idade de Cristo ao morrer e daí talvez, eu sentir uma atração compulsiva, assim por exemplo como pelo irmão Jorge S. de Fernando Pessoa, ou por Ernest Hemingway que se suicidou no mesmo dia e aparentemente à mesma hora (tratei de averiguar) em que dei o primeiro berro, a minha primeira madrugada a quatro, cinco ou talvez a dez dimensões, o Big-Bang.
Mas continuando, acerca de Daniel Faria e das revelações que dia a dia me iam sendo anunciadas por D. Bernardo de Roriz, de quem somente e ao fim de meses de restrita relação de humildade de confessionário e comunhão chegaria a saber o nome e o cargo do cónego principal do convento onde faleceu o poeta aos 27 anos de idade, segundo o qual “o olhar dos anjos tanto perturbava”.
Decidi naquele dia em que o conhecera, fazer um trajecto menos comum na montanha e percorrer esse antigo caminho que se desviava pela esquerda do principal e ficado sempre e sempre por realizar, desolado e muito abandonado, tapado por erva abundante e alta, embora tivesse já servido de via de comunicação entre algumas capelas solitárias e semi desmoronadas era um mundo mítico e aparte, coberto das memorias no musgo e dos fetos da altura de um homem, um mundo organicamente puro, sub-humano e deslocado, de tranquilidade inominável, aparentemente fora desta dimensão.
II
Numa sinceridade quase catedrática e omnisciente em que a proporcionalidade de estímulo da minha parte não excedia a determinação daquela vontade benigna e franciscana em revelar conjuras e conspirações diletantes, minhas pupilas aumentavam e diminuíam, na medida que sentia presente o som das passadas pelos claustros da basílica e as orações dos padres, estranhamente repercutidas nos arcos das ogivas centenárias. Austero nas palavras mas impetuoso, o frade congregava a minha atenção como se fosse uma novela em várias temporadas e todo o tempo do mundo fosse pouco para que terminasse o enredo, nem eu o desejava. Não faltava ao encontro, sempre e religiosamente à mesma hora, levava-lhe um pão, vinho e alguns alimentos que ele colocava de lado e num cerimonial, dir-se-ia japónico, transladava da memoria um Daniel com detalhes vividos em contornos de vitral, como só eclesiásticos sabem transmitir.
Em primeiro lugar confessou-me o facto de Daniel não ter morrido acidentalmente e não poder levar esse segredo com ele até à sepultura, visto ser a única testemunha dum homicídio perpetuado hediondamente por membros da mesma congregação religiosa e monástica que dirigira abnegadamente durante décadas.
(continuará)

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