quarta-feira, 15 de abril de 2020

A um Deus pouco divino …



Quero que nunca mais desponte o dia
Em lugar nenhum do mundo, pra que eu
Durma desperto, dividido entre o que conheço
E o que lembro e o sonho intimo, profundo,
Divino de ser tudo quanto a minha vista vê e
Reconhece como sendo o que existe, tudo quanto
Há e em mim mora, pois de Deus não sei nada,
Quero que nunca mais desponte o dia,
Enquanto eu viro outro mundo em roda na procura
Da cura pra este de que se esqueceu um Deus
Pouco divino, entre Ele e eu não há concílio
Moral ou o que afirmam ter sido, a julgar
Pla ausência de fé, nem é lei nem dá prisão,
Tudo “coisas” só, o resto são crenças entre Tu,
Nós e o mundo lá fora, já nem sei se quero partir
Ou chegar, pensar e sentir são opiniões diversas,
Nada mais que rostos de trinta mil máscaras,
Sinal que é fácil trocar palavas por ensejos,
-Gestos são oposição de polegares, expressões
Ventrículas tal como o bocejar barroco
De um retábulo não longe nem perto, em
Moscavide, é como me sinto, ignorado em
Ponto cruz, deserdado de magia na iris,
Num mundo onde salva tem gosto a malva,
Mas ainda com raiva d’fogo uso a palavra,
Uso a palavra magia quando olho
Nos olhos Teus, sendo eles azuis d’mar
Invento o uso, quando não sei de cor as cores
Do arco-íris, do vento acariciando a cevada,
O sentido e a boca me envelheceram, sim,
-De tantas palavras gastas, nem todas
Com gosto a salva e a sim, e a nada …
A um Deus pouco divino …
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Joel Matos (Março 2020)

Ninguém me distingue de quem sou eu ...



Ninguém me distingue de quem sou
Eu, tão cheio de lunares cansaços, mortos
Mundos podem causar-me nos olhos cegueira,
Tanto como mudas causas, tal como pregões falsos,
Meus olhos tão normais quanto outros
Que dentro deles vêm, um universo único,
Igual aos demais que vemos na rua
E não reparamos, tão iguais somos
Todos, pousamos os olhos nos que vemos,
E não tememos, apaixono-me p’los que vejo,
Penso neles, pousos de veludo, mundos paralelos
Tão nítidos quanto dos olhos, as planícies,
Os canais em Marte daqui perto, em Saturno,
Não me contento com a visão de outros mundos,
Páginas em branco, memória não registada,
Nem nascida nem gerada, assim eu sou,
Como o Sol que não nasceu pra ser Lua,
Eu não nasci pra ser amado, sou o
Mistério, a singularidade nua e crua,
Aguardo plo armistício, armado
De unhas, “puas”, pedras e machados,
Sou a encarnação da sombra, presságio
De vidente, antes de ser gerado o tempo
Consagrado aos comuns sentidos dos
Outros, a terceira tarefa do Omnipotente
Foi a minha vontade prússica, semelhante
Ao Cianeto de ópio, sem fé no próximo,
Nem no próprio, anacoreta da desgraça
lactente. Eu não nasci, fui gerado a cru,
Ninguém me distingue, salvo outro invisual auditivo
Perante a sua figura em papel desdenho.
Eu desdenho-me, e estes dedos e estes ossos,
Obedientes ao esforço bruto,
Mais soberanos que eu próprio, o infame
De corpo mal tatuado, imundo,
Incapaz de sentir paz ou emoção,
E eu me desdenho ao ponto esquivar viver
E isso exprime o que sou, um ponto,
Uma ínfima fracção do todo, uma inflamação,
Um conto mudo, um desenho,
Uma forma de ornamento ao corpo,
Consubstanciado a branco e preto,
Vulgar em tudo até no fôlego,
O meu ultimo refúgio,
É viver na inveja de
Não ser eu, um indistinto outro,
Distinto de quem, suposto eu sou,
Severamente eu e só,
Ninguém me distingue de quem sou.
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Joel Matos (Março 2020)

Objectos próximos,




 



Durmo com um punhal na nuca
E outro onde sinto menos, objectos
Próximos sempre me meteram medo,
Imagino o sol progredindo plos cabelos
E por entre os cinco dedos duma mão,
O som do cotovelo quando movo o braço,
Lembra-me sem querer, o mar e o rochedo,
Fico gelado nos dedos e maldigo o inverno
Frio, hoje como nunca apenas no coração
Consinto esse frio visível e sem disfarce,
Durmo com um punhal na nuca, queima
Quando me toca na face, lembra a morte
Não de todo negra, mas cinzenta pouco
Clara, como a sorte ou o sentir do beijo
Na aragem, é como a paixão, não se demora,
Mal me acontece estar triste, penso nela,
Tenho logo outra razão pra contrariar
Isso, estou triste porque existo pra fora,
Melhor não há, viver não é ruim, assim
Amo as coisas simples, o vinho tinto,
Dois seios, o pão, o cantar do galo,
O sorriso dela, o alecrim, o agasalho, um gato
No inverno, o sorriso meu, uma vela,
Um saguão e a escada e o fim do livro lido em
Vão, quanto o final de um sonho mau ou
Nada mais que meu, que a sensação de tê-lo
Sonhado, a meio sono como é hábito e em
Forma de pensamento e tacto, algo como se fosse
Outro sentido, quinto ou primeiro, em alta voz,
Falando comigo em Braille, como sempre faço.



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Joel Matos (Março 2020)

Daniel Faria, excerto “Do que era certo”





Excerto “Do que era certo”
I
Nesta adiantada etapa ou quartel da minha vida, não deveria acreditar já, nem “por’í-além” em coincidências, mas por lado contrário ainda aumentam e em muito, as minhas expectativas mundanas acerca dos acontecimentos que não conseguia nem consigo, plácida e pacificamente explicar, o método e o conteúdo exótico dos mesmos.
O dia terminava quente e na ligeira aragem fresca que se fazia sentir no rosto e na pele dos ombros nus, um remédio que cura e que ao mesmo tempo me saudava os sentidos como numa saudação cósmica benigna e universal, tal o poder que sentia em mim vindo e direccionado da natureza, um auspicioso bem estar oriundo e inscrito no espaço envolvente e sentido em uníssono com a mente e o corpo. A caminho da serra sentia-se cheiro a pinheiro bravo e aquele perfume a flores silvestres contagiante e inseparável da pele, de uma fragância libertadora, como uma bênção extraída da natureza comunicando aos poros o aval, a permissão de viver que todos os dias necessitava tal como um afrodisíaco, para voltar a dar vida à vida e poder eu continuar correndo e andando pelos trilhos da montanha aberta.
Como é próprio da minha delicada e dedicada imaginação construo apocalipses e maremotos em chávenas de café mais ou menos morno, a falta de explicação de certos fenómenos iliba-me de os comprovar (excepto no generoso aroma do café) e não contesto, jamais contesto o meu voluntarioso espírito acerca da veracidade crua e volátil dos factos, trato de os preservar como num cadinho para, no futuro (digo sempre “no futuro”) os desencantar num outro universo paralelo em que façam mais sentido e encaixem magicamente, como se fossem peças de um grande puzzle.
Daniel Faria era para mim um nome mágico, pertencia a um jovem e raro poeta, monge noviço, falecido pouco tempo antes e de uma forma misteriosa, para não dizer suspeitosa e pouco esclarecida, no claustro de um convento escondido ao norte do país, Singeverg, em S. Martinho de Cucujães, uma ancestral e secreta congregação Beneditina, este sempre me tinha fascinado e não só pela escrita poética, mas não imaginava eu que, nas minha deambulações reais e com os pés e cóccix bem assentes sobre as pernas cruzadas, num chão de terra batida, o seu nome fosse pronunciado de uma forma tão real, esclarecida e clara embora com voz rouca de um sem abrigo ou eremita com que me fui acostumando a conviver na serra, ao longo de dias e meses de conversas interessantes e inteligentes acerca do tudo e do nada das coisas da vida e naturalmente da morte.
Não resisti, dificilmente resisto a partilhar perante todos e o mundo, além das minhas fontes, (verdadeiras ou falsas) o inicio e o móbil dos meus romances, tal como desta vez. Daniel Faria morreu auspiciosamente no dia do meu aniversário, o trigésimo terceiro, a pretensa idade de Cristo ao morrer e daí talvez, eu sentir uma atração compulsiva, assim por exemplo como pelo irmão Jorge S. de Fernando Pessoa, ou por Ernest Hemingway que se suicidou no mesmo dia e aparentemente à mesma hora (tratei de averiguar) em que dei o primeiro berro, a minha primeira madrugada a quatro, cinco ou talvez a dez dimensões, o Big-Bang.
Mas continuando, acerca de Daniel Faria e das revelações que dia a dia me iam sendo anunciadas por D. Bernardo de Roriz, de quem somente e ao fim de meses de restrita relação de humildade de confessionário e comunhão chegaria a saber o nome e o cargo do cónego principal do convento onde faleceu o poeta aos 27 anos de idade, segundo o qual “o olhar dos anjos tanto perturbava”.
Decidi naquele dia em que o conhecera, fazer um trajecto menos comum na montanha e percorrer esse antigo caminho que se desviava pela esquerda do principal e ficado sempre e sempre por realizar, desolado e muito abandonado, tapado por erva abundante e alta, embora tivesse já servido de via de comunicação entre algumas capelas solitárias e semi desmoronadas era um mundo mítico e aparte, coberto das memorias no musgo e dos fetos da altura de um homem, um mundo organicamente puro, sub-humano e deslocado, de tranquilidade inominável, aparentemente fora desta dimensão.
II
Numa sinceridade quase catedrática e omnisciente em que a proporcionalidade de estímulo da minha parte não excedia a determinação daquela vontade benigna e franciscana em revelar conjuras e conspirações diletantes, minhas pupilas aumentavam e diminuíam, na medida que sentia presente o som das passadas pelos claustros da basílica e as orações dos padres, estranhamente repercutidas nos arcos das ogivas centenárias. Austero nas palavras mas impetuoso, o frade congregava a minha atenção como se fosse uma novela em várias temporadas e todo o tempo do mundo fosse pouco para que terminasse o enredo, nem eu o desejava. Não faltava ao encontro, sempre e religiosamente à mesma hora, levava-lhe um pão, vinho e alguns alimentos que ele colocava de lado e num cerimonial, dir-se-ia japónico, transladava da memoria um Daniel com detalhes vividos em contornos de vitral, como só eclesiásticos sabem transmitir.
Em primeiro lugar confessou-me o facto de Daniel não ter morrido acidentalmente e não poder levar esse segredo com ele até à sepultura, visto ser a única testemunha dum homicídio perpetuado hediondamente por membros da mesma congregação religiosa e monástica que dirigira abnegadamente durante décadas.
(continuará)

Pra lá do crepúsculo

Pra lá do crepúsculo Deixei de ser aquele que esperava, Pra ser outro’quele que s’perando Em espera se converteu, alternando Despojo com eng...